Kafka no Planalto Central
O PROCESSO não expande sua abordagem para mostrar, por exemplo, a decisiva influência da mídia e do poder econômico-financeiro na consecução do golpe. Não há a pretensão inócua de abranger todas as injunções e interesses escusos em jogo
Por Carlos Alberto Mattos 23/02/2018 09:10
“Isso aqui é O Processo do Kafka! A Presidenta Dilma é o Joseph K!”, bradou o senador Lindbergh Farias numa das sessões que encaminhavam o Congresso para o impeachment de Dilma Rousseff. Talvez venha daí o título do filme em que Maria Augusta Ramos fez a crônica do momento mais tenebroso da história brasileira recente. O PROCESSO foi exibido ontem na seção Panorama do Festival de Berlim e chega às nossas telas em fins deste semestre.
Sem entrevistas, sem comentários, sem música, sem qualquer efeito. O horror político e judiciário é mostrado somente com suas próprias imagens e sons. Maria Augusta é nossa mais devotada cultora do cinema direto. Ela não monta dossiês nem veicula teses. O PROCESSO não expande sua abordagem para mostrar, por exemplo, a decisiva influência da mídia e do poder econômico-financeiro na consecução do golpe. Não há a pretensão inócua de abranger todas as injunções e interesses escusos em jogo. Embora tenha filmado 450 horas em diversos pontos do país, Maria Augusta circunscreveu o filme ao Congresso Nacional e suas redondezas. Ali estava o palco para onde convergiam todas as forças políticas em jogo.
Da vergonhosa sessão da Câmara que abriu o processo do impeachment até a sua concretização e os efeitos imediatos do desgoverno Temer, o filme trafega entre corredores, gabinetes, salas de reunião, plenários e manifestações externas no Plano Piloto. Lidando com um material em sua maior parte conhecido do espectador, Maria Augusta consegue, no entanto, estabelecer novos insights e criar uma dramaturgia eficaz que nada tem a ver com a cobertura jornalística dos mesmos eventos.
Isso se percebe, entre outras coisas, na conjugação de tomadas de quem fala e de quem ouve. Nota-se tanto a tensão e a preocupação dos então governistas diante de depoimentos torpes da oposição golpista quanto o escárnio e o descaso dos golpistas em relação aos argumentos dos defensores de Dilma. Numa cena bastante ilustrativa, os senadores petistas tentam inutilmente chamar atenção de uma mesa completamente dispersa para sua exposição.
Se Deus está nos detalhes, como diz o provérbio, estes não faltam para dar conta do circo armado na Câmara, no Senado e no STF. Lá estão os esgares e lágrimas psicóticos de Janaína Paschoal, assim como a pajelança entre ela e representantes do atraso no país (“Tenham em mim uma aliada”); a chegada afoita de um grupo de jornalistas para uma sessão decisiva; a interrupção de um pronunciamento importante de Lindbergh para a troca da campainha do auditório do Senado; Eduardo Cunha cometendo ato falho ao criticar os que o estavam levando ao “banco dos réis”.
Na tarefa hercúlea de tornar compreensível um longo e complexo processo sem cair na prolixidade de falas e pontos de vista, a diretora e a montadora Karen Akerman optaram por eleger alguns personagens principais. De um lado, a senadora Gleisi Hoffmann, Lindbergh e o ex-ministro José Eduardo Cardoso. De outro, o senador Cássio Cunha Lima, Eduardo Cunha e Janaína. Com as intervenções e flagrantes observados desses seis, é mesmo possível resumir toda a história.
A observação, porém, não é uma vestal sem partido. Maria Augusta está claramente do lado da democracia, naquele momento golpeada. Suas câmeras filmam os governistas também na intimidade de suas conversas e reuniões de estratégia, ao passo que os oposicionistas são vistos apenas em situações públicas. Isso reflete não só uma tomada de posição da realizadora, mas principalmente uma circunstância moral dos envolvidos. Afinal, quantos golpistas abririam suas guardas para um registro direto de suas intenções e métodos?
Não que faltem depoimentos de autocrítica dos petistas. Gleisi e Gilberto Carvalho têm falas preciosas sobre o conservadorismo e a falta de garra política do PT no governo. Embora seja a personagem central e alvo do processo, Dilma aparece relativamente pouco. Como é do seu feitio, não está ali como vítima, mas como alguém que saiu da cadeira de presidente de cabeça erguida, citando Maiakovsky e dando nome ao golpe.
Dali em diante, as nuvens negras enveloparam Brasília, como realça o último e metafórico plano do filme. O PROCESSO vai ficar como um documento excepcional para a memória e o esclarecimento do que se passou com o Brasil em 2016.