#Carta:’O Processo’ como o avesso de ‘O Mecanismo’

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'O Processo' como o avesso de 'O Mecanismo'

por Pedro Alexandre Sanches — publicado 22/04/2018 00h10, última modificação 20/04/2018 16h10
Documentário, que estreia em maio, rememora o impeachment kafkiano de Dilma Rousseff e reflete a prisão de Lula, na contramão das leituras oficiais

Roberto Stuckert Filho/PR

 

impeachment, Maria Ramos, 'O Processo'

No teatro da guerra brasiliense, Dilma recebe flores de mulheres anônimas, em abril de 2016

O aniversário de dois anos do afastamento
de Dilma Rousseff da Presidência da República será marcado, em maio próximo, pela estreia comercial do filme O Processo, de Maria Augusta Ramos.

O documentário acompanhou os bastidores do impeachment de Dilma desde a aceitação do processo pela Câmara dos Deputados, em 17 de abril de 2016, até a consumação da queda da presidenta no Senado, em 31 de agosto do mesmo ano. Quase dois anos depois do início do processo kafkiano contra Dilma, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está na prisão.

O Processo foi apresentado em première (e premiado pelo público em terceiro lugar na categoria documentário) no Festival de Berlim, em fevereiro passado. Terá uma primeira sessão pública nacional dentro da programação da 23a edição do festival de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo, no domingo 15 de abril, às 17 horas, no Instituto Moreira Salles, na mesma Avenida Paulista que acolheu, dois anos atrás, as manifestações que culminaram na deposição de Dilma. Em 20 de março, tornou-se público o fato de que o governo federal, neste ano, recolheu os tradicionais patrocínios da Petrobras e do BNDES ao É Tudo Verdade.

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Maria Augusta teve acesso aos mecanismos do impeachment (ou do golpe de Estado, conforme o lado do espelho em que se vê a história) por intermédio de atores dilmistas do teatro de guerra, como o advogado de defesa José Eduardo Martins Cardozo e os senadores petistas Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias.

Sem acesso equivalente aos então oposicionistas, a diretora mostra apenas de relance, e mudas, algumas das peças centrais da deposição do governo petista, como os senadores Aécio Neves, José Serra e Marta Suplicy. Dessa maneira, O Processo estabelece um inusitado jogo de espelhos com a interpretação ficcional formulada de fora para dentro pela Netflix, na série O Mecanismo, do diretor brasileiro, mas atualmente hollywoodiano José Padilha.

Pelo posicionamento das peças no jogo de xadrez, a ficção O Mecanismo representa quem está hoje no poder, enquanto o documentário O Processo começa a tomar o papel de fazer a contranarrativa dramatúrgica, com foco principal do lado derrotado pelo processo de golpe/impeachment.

Os jogos de espelhos são muitos, e todos perturbadores. Seja por ideologia ou pela contingência dar voz privilegiada ao lado dilmista (ou por ambos os motivos), O Processo faz-se palco de inúmeras denúncias contra o cerceamento de defesa de Dilma numa engrenagem artificial, de encenação e de exceção.

Cada uma das denúncias pode se espelhar com assustadora simetria aos cerceamentos que hoje cercam o processo contra o ex-presidente Lula e com a prisão dele em 7 de abril. Na derrubada de Dilma estavam em primeiro plano os atores legislativos, como hoje os atores judiciários são protagonistas da tentativa de retirar Lula da disputa presidencial de 2018.

A mídia hegemônica, ativista dos dois momentos (e de todo o processo), está quase totalmente ausente do filme de Maria Augusta. O Processo foi bancado pela produtora da cineasta, NoFoco Filmes, com coprodução do Canal Brasil, um canal de tevê por assinatura resultante da associação da Globosat com o Grupo Consórcio Brasil, formado por Luiz Carlos Barreto e outros produtores e cineastas nacionais.
O pingue-pongue entre o passado recente da queda de Dilma e o presente da prisão de Lula se torna evidente quando o ex-presidente aparece pela primeira vez em O Processo, ao lado de Chico Buarque, para acompanhar o depoimento de Dilma aos carcereiros legislativos do Senado. Lula entra mudo e sai calado de O Processo.

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Outro espelhamento possível é o que completa a representação cinematográfica de um arco de ascensão e queda dos governos petistas. Em 2004, no segundo ano do primeiro governo Lula, estreou a dupla de documentários Peões, de Eduardo Coutinho, e Entreatos, de João Moreira Salles (também presidente do Instituto Moreira Salles, instituição parceira do 23o É Tudo Verdade ao lado de Itaú Cultural, Sesc, Spcine e Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo).

Entreatos documentava os bastidores da primeira eleição de Lula, enquanto Peões focava os ex-companheiros do novo presidente no sindicalismo dos trabalhadores do ABC Paulista. Na despedida do poder, Dilma deu acesso aos bastidores a pelo menos quatro mulheres cineastas – além de Maria Augusta, as diretoras Anna Muylaert, Lô Politi e Petra Costa captaram imagens por enquanto inéditas do processo.

A polarização masculino-feminina é tema marginal de O Processo, mas permeia as cenas do início ao fim, seja nos discursos pró-Dilma das deputadas mulheres Jandira Feghali e Maria do Rosário e do deputado homossexual Jean Wyllys na votação da Câmara (em contraponto com a brutalidade hipermasculina dos votos pró-deposição), seja na polarização entre Gleisi Hoffmann e a advogada de defesa do impeachment, Janaina Paschoal, seja nas comoventes cenas em que Dilma se faz acompanhar por mulheres aliadas e vai receber flores de mulheres anônimas na entrada do Palácio do Planalto, em 19 de abril de 2016.

No lado do ataque ao governo petista, perfilam-se atores que hoje fazem sentido em conjunto, em cenas de confabulação entre Aécio e Romero Jucá, nas ausências gritantes do já então apequenado STF (exceto uma aparição de Ricardo Lewandowski), dos juízes da Lava Jato e do homem que rumava passo a passo para a Presidência da República, Michel Temer.

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No lado que então atacava (e hoje está na defensiva), somam-se expressões graves e figuras de gestos abertamente histriônicos, como Janaina Paschoal e o senador tucano Aloysio Nunes. Na retaguarda, perfilam-se semblantes serenos e a palidez de Gleisi e da senadora comunista Vanessa Grazziotin (além da de Eduardo Cunha).

A câmera de Maria Augusta se demora no silêncio de figuras femininas e do assessor negro de cabelo rastafári de Cardozo. Mais um espelhamento se estabelece. De um lado, está o cinema televisivo masculino de José Padilha, diretor dos dois filmes militaristas intitulados Tropa de Choque. Do outro, está o cinema sisudo de O Processo, que fecha com Justiça (2004) e Juízo (2008) uma trilogia feminina de Maria Augusta sobre justiça, e pró-justiça.

Não deve ser à toa que a diretora promove um derradeiro espelhamento dentro de O Processo, entre as flores que Dilma recebe das apoiadoras em 2016 e as bombas de efeito moral que o ausente Temer devolve para os manifestantes do gramado brasiliense em 2017, quando da denúncia de Joesley Batista contra o ex-vice-presidente que usurpou meio mandato de Dilma Josef K Rousseff.