Berlim ovaciona ‘O Processo’, o atestado de óbito da democracia nacional

Berlim ovaciona ‘O Processo’, o atestado de óbito da democracia nacional


Existem filmes de guerrilha ligados ao torvelinho da História de seus países que entraram para a posteridade do cinema pela acuidade e pela urgência com que registraram e reagiram a conflitos de suas terras, como é o caso de A Batalha de Argel (1966), de Crônica dos Anos de Fogos (1975) e, agora, de O Processo, ovacionado nesta quarta-feira na Berlinale. Com uma agilidade típica dos thrillers do jovem Costa-Gavras, tipo Z, o filme de Maria Augusta Ramos é o atestado de óbito da democracia brasileira – ainda que ressurreições possam acontecer nas próximas eleições. Sua narrativa foi erguida a partir dos julgamentos do Impeachment de Dilma Rousseff, resgatados a partir de 400 horas de material filmado, que serviram de base para uma narrativa fiel ao dispositivo documental autoral da realizadora. Longas-metragens como Justiça (2004), Juízo (2007) e Futuro Junho (2015) consagraram a estética de Maria Augusta: não importa qual seja o tema e o objeto que o traduza, ela vai partir dele para flagrar a natureza encenadora (e retórica) do ser humano num embate de ideias. Alguém sempre está representando, consciente ou não da câmera ligada, no jogo de argumentações com seu próximo. Isso vale para menores infratores, para corretores da Bolsa de Valores de SP ou para Aécio Neves. Essas encenações se desvelam diante das lentes da diretora, como evidências da sociedade do espetáculo (aquela sobre a qual o filósofo Guy Debord escrevia), num teatro de guerra. E cada instituição tem a Antígona que merece: o Congresso tem uma tragédia grega, de aparentes mocinhos (Lindbergh Farias, Jean Wyllys), de potenciais vilões (como Bolsonaro, Eduardo Cunha, Janaína Paschoal) e de Tirésias (Lula), reescrita à luz de Kafka. Os ideais de virtudes de todos mudam de acordo com os atos dessa tragédia, arquitetados numa dramaturgia híbrida de jornada do herói (no caso, Dilma, com direito a versos de Maiakósvki e tudo) e discurso dialético na febril montagem de Karen Akerman. Acertos e erros de ambos os lados (sobretudo do PT) vão sendo revelados num trabalho de edição que talvez seja um dos mais acurados já feitos por um filme brasileiro desde de Maioria Absolta (1964). Com isso, a aberrativa ideia de que temos “personagens” cai por terra, dando lugar a “pessoas”. São “pessoas” de carne e osso que teatralizam seus ritos no dia a dia, incluindo no Planalto… ou no Senado. E aqui, cada depoimento dá espaço para um circo de rins e fígados, no qual se ri de nervoso e se chora de repúdio. A tormenta de emoções faz do longa uma peça de resistência e um espetáculo cinematográfico da mais alta grandeza. Estamos diante de um marco histórico do Brasil nas telas. Daí tanto aplaudo e gritos de “Bravo!” no 68º Festival de Berlim  “Quando fui editar o material filmado, eu me dei conta de que deveria ser um filme sobre o julgamento e não sobre Dilma ou sobre o Senado”, disse Maria Augusta Ramos ao fim da projeção, comovida com o carinho do público.

Dilma Rousseff: o epicentro da narrativa

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