Justiça


Em “Justiça”, Maria Augusta Ramos filma o indivíduo para chegar àquilo que o cerca. Se o seu olhar por hora nos parece distante, essa distância vai se revelando uma ilusão. O simples fato de observar os que não costumam ser observados, sobretudo em determinados contextos, já é uma forma radical de aproximação.
“Justiça” pousa a câmera onde muitos brasileiros jamais puseram os pés – um Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, acompanhando o cotidiano de alguns personagens. Há os que trabalham ali diariamente (densores públicos, juízes, promotores) e os que estão de passagem (réus).


A câmera é utilizada como um instrumento que enxerga o teatro social, as estruturas de poder – ou seja, aquilo que, em geral, nos é invisível. O desenho da sala, os corredores do fórum, a disposição das pessoas, o discurso, os códigos, as posturas – todos os detalhes visuais e sonoros ganham relevância. O espaço, as pessoas e sua organização são registrados de maneira sóbria. A câmera está sempre posicionada em relação à cena mas não se move dramaticamente, não busca a falsa comoção. Sinal de respeito, de não-exploração. No filme, não há entrevistas ou depoimentos, a câmera registra o que se passa diante dela.

Maria Augusta Ramos observa um universo institucional extremamente fechado e que raras vezes é tratado pelo cinema ficcional brasileiro. Seu filme é tão mais importante em função de nossas limitações em termos de representação dos sistemas judiciais. Em geral, nosso olhar é formado pela visão do cinema americano, os “filmes de tribunal”. “Justiça”, sob esse aspecto, é um choque de realidade.


O filme mostra o dia-a-dia do fórum por meio de flagrantes da sala em que são realizados pequenos julgamentos de crimes não-escandalosos: o homem que foi pego com um carro roubado, outro que é acusado de cumplicidade em roubo, ou ainda os jovens que estariam portando drogas e armas perto de uma boca de fumo. A cineasta vai acompanhar um pouco mais de perto uma defensora pública, um juiz/professor de direito e um réu, cuja situação é particularmente complicada por ele ser reincidente. Primeiro, a câmera os flagra no “teatro” da justiça; depois, fora dele, chegando a acompanhar alguns até as suas casas.

No caminho, apesar da aparente pequenez dos crimes, a cineasta vai encontrar muitas situações de alto teor dramático. É um de seus maiores méritos saber filmar essas situações sem transformá-las no escândalo que algum outro diretor, afoito pela emoção, pudesse buscar. Se “Justiça” vai chegar à emoção, é pela simplicidade.

Pedro Butcher
Revista Cinemais